domingo, 29 de maio de 2011

vida aí (...)

A única certeza agora é que, nos entardeceres quando o céu está tão intensamente lindo que meu maior desejo é deitar nele, tive um dia feliz. Não porque tenha sido agradável o trabalho ou amáveis as pessoas comigo. Mas porque, pura e simplesmente, sinto vontade de fazer do céu, chão. De resto, sei mais nada do que sempre.



Apenas da saudade que hoje nada mais é do que lembrança, e não vontade de ser novo. Há que se sofrer por isso?




sábado, 19 de março de 2011

MÉTRICA


mesmo sem ter havido



Hoje cedo a saudade invadiu e cortou seca meu ateliê. Senti o coração feito linho rasgando ao meio. Feito tecido perfurado pela agulha ágil e certeira da velha Crosley que era de minha mãe e que hoje ocupa lugar de merecido destaque entre a de overlock e a Singer moderna.
Nesse mesmo dia, há exatos dois anos, eu vi Beatriz pela última vez. Fevereiro, faltavam quinze dias para o Carnaval. Eu entregara a ela a roupa que usaria para dançar frevo no Recife. Não era, pois, propriamente uma fantasia, mas tão somente um delicado e curto vestido branco estampado com flores amarelas, alaranjadas e cor-de-rosa. Ela o usaria em combinação com uma máscara verde do tipo morcego e sapatilhas, também amarelas - como algumas flores do vestido - nos pés. Somente.


Seda vermelha.


Eu poderia ter feito o vestido de Beatriz em uma semana. Passadas as festas de fim de ano a demanda caía, deixando-me tempo de sobra para as encomendas eventuais. Além disso, os pedidos para as duas lojas para as quais trabalho já estavam bem adiantados.
E então, aquela tarde de janeiro me trouxe um mormaço bom. Vontade de me estirar, sol na cabeça, coração iluminado.
Abri a porta. Ela disse vir por indicação de uma amiga.
Sorriso aberto, lindo e tímido. Naquela medida certa para o nocaute.
Decidi, então, que, qualquer fosse a roupa a ser feita, levaria um mês. Terminaria com folga para a data da sua viagem.
Era também tempo suficiente para que eu sofresse por ela. Soube disso no instante em que coloquei os olhos sobre aquela mulher baixa de cabelos muito pretos e ondulados.
Sempre funcionei assim: instantaneamente. Paixão, sempre. Eu tenho 36 anos e nenhuma vergonha de dizer que durante toda a minha vida eu fugi do amor. Porque o amor para mim é como se eu costurasse 352 uniformes cinzas para operários de uma indústria automotiva. Seriado e repetitivo.


E eu prefiro fazer fantasias de carnaval.


Aos montes, também, mas uma de cada cor. Uma para cada desejo.


Uma para cada ilusão.


Nunca soube nada sobre Beatriz além de seu nome e que gostava de, todas as manhãs de domingo, tomar café ouvindo os discos que o pai lhe havia deixado de herança.
Apesar disso, o que mais senti dela foi o seu cheiro bom. Entre o doce e o cítrico, ela parecia exalar algo entorpecente.


Veludo carmim.


Durante o período de confecção do vestido, eu contava as horas até que ela chegasse para fazer a prova. Aproveitava da necessidade de tirar as medidas e fazer os ajustes para ficar bem próxima dela. Não me interessei em desvendar qual era o prazer de Beatriz. Mas nada leva da memória de minha pele os arrepios sutis que ela dava cada vez que eu, sem querer, roçava de leve as minhas mãos em seu corpo com a fita métrica. Era quase uma cena inocente, não fosse meu mais intenso e voraz desejo de tê-la ali, naquele cenário perfeito de retalhos coloridos espalhados por todos os lados. Quando isso acontecia, eu virava lentamente meu rosto em direção ao dela e sorria com malícia. Ela arrumava os cabelos com timidez, puxando-os para o lado esquerdo, deixando assim o lado direito do pescoço inteiramente nu – e até hoje me pego a pensar se ela fazia isso inconscientemente ou a fim de que eu tomasse alguma atitude -. Nessa hora, eu morria um pouco.
Em uma dessas vezes, quando eu estava agachada nas costas dela alinhavando o comprimento da fantasia, não resisti: fiquei em pé, extremamente próxima a ela, mas sem me encostar. Assim, podia sentir emanando para mim todo o seu calor e a tensão expressa em suas mãos, que seguravam com força a parte da frente da roupa. Inclinei meu rosto naquela área perfeita entre a orelha e o pescoço. Ela usava um brinco de lua e estrela. Naquela fração de segundo, em que eu não fiz absolutamente nada a não ser olhar, e que Beatriz apenas tremeu-se toda, fui a mulher mais feliz do mundo.


Linho rosa antigo.

Uma semana depois disso, o vestido ficou pronto. Ela veio buscá-lo no fim da tarde de uma quinta-feira.
Não quis entrar em casa. Disse que estava com pressa com os últimos preparativos da viagem, que seria no dia seguinte, e pediu que eu fosse até o portão.
Fui até lá, e, enquanto entregava a pequena sacola com a encomenda, lancei meu olhar mais quente, mais apaixonado e já mais cheio de saudade. Eu sabia que nunca mais a veria.
Ela fez o seu movimento com as mãos nos cabelos, agradeceu, me pagou e, antes de, muito rapidamente e sem graça, me entregar uma sacola cor de laranja, olhou para o fusca branco que a esperava do outro lado da rua. Apenas disse: “Tchau...” e foi-se.
Abri: era o LP “Álibi”.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Adeus, foi pra nunca mais voltar.

ontem meu ipê amarelo da Gabriel dos Santos morreu. A fúria acumulada dos ventos e raios do verão derrubou minha velha e tão recente amiga. Nunca mais o tapete de pétalas sobre a dureza da calçada antiga. Nunca mais ver passar de manhã debaixo dele aquela guriazinha tão mirradinha e loura, pela mão com a mãe levando a bonequinha e ela pra escola. Doeu. As raízes à mostra, assim, tão machucadas, arrancadas à força. Acabou. Só restou a casa bergmaniana. Agora, sem gritos nem sussurros. Apenas meu silencioso suspiro de saudade. (de novo, a saudade).